:: O CENTRO ESTÁ EM TODA PARTE,
O CENTRO NÃO ESTÁ EM PARTE ALGUMA… ::
Dia desses, em uma de minhas andanças errantes pela USP, deparei com algo que nunca tinha notado em 5 anos como FFLCHiano. Rodeando o monumento central da Praça do Relógio, que fica ilhado no meio de um lago, há uma espécie de calçada circular que margeia a água. Parece um singelo convite arquitetônico para que casaizinhos enamorados passeiem ao redor da obra que simboliza como que o coração do câmpus. Por estar num momento um tanto chatonildo, comecei ralhando, todo utilitarista e funcional: pensei no quão absurda é a idéia de um caminho circular, ou seja, que sempre conduz o babaca do andante ao seu ponto de partida, ao invés de fazê-lo progredir numa trilha que conduza a algum lugar. Não estava pensando como poeta… Depois pensei no quão absurdo é o fato do próprio Planeta Terra estar dançando pelo espaço numa órbita, e me lembrei espantado de que somos tiny tiny mammals, grudados ao solo de uma rochinha perdida nalgum pontículo do Universo, rochinha que gira em círculos ao redor de uma estrelinha fajuta, feito uma mariposa planetária ao redor duma lâmpida irrestivelmente sedutora…
Mas o que realmente me chamou a intenção foi aquilo que estava escrito no chão, em caracteres que acompanham a curvatura da calçada: No universo da cultura o centro está em toda parte. E na hora me voltou à memória a reflexão do Nagel sugerindo que uma “visão objetiva” da realidade teria que partir da admissão básica de que nenhum de nós é o centro da realidade. Quando fazemos de nosso “eu” um ponto-de-apoio absoluto, será que não caímos na alucinatória presunção noção de sermos centrais, quando tudo indica que nosso planeta não tem absolutamente nada de central nem no nosso sistema solar, nem no Universo como um todo? Não é bem mais plausível, até, que estejamos numa espécie de periferia universal, ou mesmo que não haja o mínimo sentido em falar num centro e numa periferia do Universo, que talvez se esparrame por aí sem nada que se possa chamar de um “miolo”, de um marco-zero absoluto?…
Bem, digressões saganianas à parte, para dar sequência a estes tateios em busca de uma compreensão do que seria “objetividade” talvez seja útil pensar agora: afinal de contas, ao que esta tal de “objetividade” se opõe? Ela é o contrário do quê? Contra que “vícios” e “equívocos” ela procura se engajar contra? Como eu entendo este conceito em Nagel, objetividade não se oporia à subjetividade, exatamente. Há uma série de antônimos que eu considero mais adequados: egolatria, solipsismo, delírio narcísico, auto-favoritismo…
A busca pella objetividade manifesta-se pelo “cuidado” que alguém tem em não deixar-se cegar por seus interesses, desejos e preferências pessoais a ponto de ver uma realidade “distorcida pela fantasia”. É o contrário do narcisismo, e um dos remédios contra ele. Ao invés da auto-glorificação ou auto-endeusamento, a humildade de tentar reconhecer sua verdadeira posição no conjunto e estar em meio a ele num estado de serena ausculta. É como saber abrir-se para ouvir a música cósmica, por mais dissonante que soe, ao invés de ficar ouvindo só o som que produz a nossa flauta imaginária…
Em resumo: ser “objetivo” é ser capaz de alçar-se acima de seu euzinho e enxergar-se como parte do todo, como uma minúscula criaturinha contida no vasto universo, como um dentre muitos sujeitos sencientes e pensantes num universo cujo “centro” não está em nenhum deles…
Após a superação do teo-centrismo e do criacionismo, ainda faltou à humanidade superar o ego-centrismo! E uma das intenções de Nagel parece ser ofertar ao seu leitor um “método de auto-transcendência”, uma defesa da “possibilidade da ascensão objetiva” (pg. 114). Mas não esperem achar no livro uma espécie de “Manual Para Ícaros Iniciantes Sobre Como Alçar Vôo Para Além da Subjetividade”. Para Nagel, trata-se não de oferecer uma receita fácil para a conquista de uma “objetividade científica perfeita” (ele decerto não acredita nesta possibilidade…), mas antes de mais nada de combater, entre outras coisas, o solipsismo idealista: a lunática crença de que a minha perspectiva corresponderia à “Realidade”, e isto por ser eu o “centro-do-mundo”!
Ascender rumo à objetividade inicia-se com a percepção banal de que o universo não tem como centro nosso querido euzinho… E é decerto muito mais desconfortável e assombroso tentar aperceber-se da imensidão do existente e descobrir-se “como uma simples centelha senciente entre uma miríade de outras”, como diz Nagel (pg. 141). Peca por falta de objetividade todo aquele que deixa-se cegar pelo próprio desejo e por seus interesses pessoais, absolutizando sua perspectiva individual como se ela, ao invés de relativa e limitada, fosse nada menos que “o centro de tudo”.
Ora, se esta “ascensão objetiva” que Nagel nos convida a realizar é tão difícil, isto se deve também ao conforto que sentimos ao pensar que nossa paróquia esgota todo o Universo. É a atitude daquele que, alvo justo de escárnio, acha que o mundo é do tamanho do seu bairro. Ou da sua cabeça.
De modo que um dos procedimentos mais básicos nesta trilha rumo à conquista de uma percepção mais objetiva da realidade está no processo de procurar substituir nossas “concepções paroquiais” por concepções mais “universais”.
Se a objetividade é uma conquista tão árdua, acredito, é por ser tão potencialmente letal a tantas de nossas crenças mais caras, que dão sustento à nossa auto-estima e que nos ajudam a embelezar a “figura humana” a nossos próprios olhos. Mas para a imensa maioria dos humanos, me parece, a felicidade conta mais do que a objetividade. Mais vale crer naquilo que nos consola e conforta do que procurar conhecer uma verdade que nos esmaga e nos humilha.
Estou convencido, aliás, de que as “feridas narcísicas” da humanidade que Freud elencou são todas, de certo modo, fruto de um aprofundamento do nosso conhecimento objetivo a respeito do planeta e do cosmos e de nossa posição no interior deles. A objetividade é uma montanha que escalamos com esforço, quase a contragosto, pois ela exige que larguemos pelo caminho as ilusões agradáveis e as confortáveis crenças com as quais nos munimos para não soçobrar na insignificância.
Publicado em: 26/09/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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